por
Flávia Venturoli Miranda
23 de
setembro de 2013
na Conferência
da Aliança do Yoga 2013
Difícil resumir as origens tão abrangentes e
diversas do hatha yoga [haTha yoga] , mas vamos lá. Através de
fontes literárias da tradição, indicarei e explicarei suas origens. Contudo,
para ser sucinta, restringirei somente as origens e não abordarei as
metodologias do hatha yoga para atingir seu objetivo.
Começarei pela a própria palavra hatha
traduzida por força extrema ou obstinação (WILLIANS, 2001). Embora essa palavra
já estivesse nos Vedas, sua aplicação junto ao yoga surge apenas no texto, hoje
perdido, Hathayoga do sábio Goraksha
[gorakSa]. A explicação do sentido velado da palavra hatha, como
a junção das energias solar/lunar está em outro texto também de Goraksha, o Siddha Siddhanta Paddhati [siddha siddhAnta paddhati] (século
IX):
“A letra ha [ ] se
refere ao surya [sUrya] e a letra tha [Tha] indica chandra [candra].
Quando chandra e surya estão em equilíbrio é chamado de hatha
yoga.”
cuja frase depois é repetida na Hatha Ratnavali [haTha ratnAvalI] I.21 (século XVII) de Shrinivasa Bhatta [shrInivAsa bhaTTa].
Eliade cita o comentário Goraksha
Paddhati (século IX), como outra fonte da explicação de ha = sol
e tha = lua. (ELIADE, 1996 p. 193).
Aqui já aparecem 2 características típicas da
origem tântrica dessa tradição: o uso de jogos de palavras de duplo sentido que
mantém a informação afastada do leigo não iniciado e principalmente, a proposta
de fusão (à força?) do sol e da lua, que são opostos e complementares. O tantra
trabalha afirmativamente [satkAryavAda] à assimilação dos pares de
opostos e visa à reunião das polaridades. O mundo existente é a dinâmica da
energia, Shakti [shakti],
juntamente com a estática consciência, Shiva
[shiva]. Esses princípios são a unidade buscada pelas práticas
tântricas. Para isso, o tantra não exclui nenhuma possibilidade (nem sacra nem
profana) para essa realização, pois não há o profano apenas o sagrado:
"Não existe nada que não seja Shiva.” Svacchandatantra
IV- 314.24
Como o sagrado é o profano, usam-se meios
tangíveis para o reencontro no sagrado. O yoga do jivatman [jIvAtman]
com o Paramatman [paramAtman] dáse através da dialética da
corporificação do macrocosmo, e assim a divinização do corpo [deva deha].
“Agnisara dhauti [agnisAra dhauti]. Pressione o nabhi granthi [nAbhi granthi] de encontro à coluna
100 vezes. Este
é o agnisara. Concede siddhi [ ] na prática
do yoga, cura todos as afecções
da barriga e aumenta
o jatharagni [jATharAgni]. Esta forma de dhauti deve ser
mantida muito secreta.
É difícil de ser
conseguida mesmo pelos
devas [ ]. Somente por
esta dhauti consegue-se certamente
obter um
corpo divino [deva deha].”
GhS I.20 e 21
O hatha yoga é um kayasadhana
[kAyasadhAna] (caminho corporal) para a libertação [mokSa], através da
perfeição [siddhi] corpórea pela autopurificação (em seus vários níveis)
que se reflete como a busca da imortalidade [amRRita]. De maneira clara, a samhita [saMhitA] do Gheranda
[gheraNDa] I.6 a 8 (século XVI) explica o porquê do trabalho corporal:
“Os ghatas [ghaTa] {corpos} de todos os seres animados são
produzidos devido aos karmas bons e maus. Os
ghatas dão ensejo
aos karmas e assim o círculo é contínuo
como de um
moinho. Como
a roda de um
moinho puxando a água
de um poço,
movida por bois,
assim o jiva [jIva] passa através
da vida e da morte,
movido por suas
ações. Como
um pote
de barro não
queimado jogado dentro d’água, o corpo logo perece. Asse o corpo
no fogo do yoga, para
fortalecer e purificar.”
Podemos ver o mesmo caminho corpóreo nos seguintes
versos do Goraksha Shataka [gorakSa
Shataka] 1 a 3 (século IX),
autoria de Goraksha,
“Om! Exporei o Goraksha Shataka que
é o libertador dos laços
da existência. É o despertador
do atman [Atman] e um assistente para a chave da porta
de viveka [ ]. Assim, é uma escada
para ser libertado, aqui se trapaceia kala [kAla], em que manas [ ] se livra
do apego da ilusão
[moha] e se torna conectado ao Paramatman.
Nota-se principalmente que o hatha yoga
é uma prática corpórea e não apenas uma filosofia especulativa onto/soteriológica,
apesar de ter um vasto embasamento teórico. A quietude mental do samadhi
[samAdhi] passa pela transmutação concreta através da parada física do
assentamento do assana [Asana], respiratória ou vital do kevala kumbhaka
[ ] e sexual na vajroli mudra [vajrolI mudrA ]. Como vemos no Hatha
Pradipika [haTha pradipIka] IV.26 a 28:
“Rassa [ ] e manas são instáveis por natureza. Quando rassa e manas estão fixos, então o
que não pode ser perfeito?
Oh Parvati [pArvatI]! Quando rassa e vayu [vAyu] ficam imóveis, a pessoa
move-se no ar. Com o torpor deles, o próprio jiva bebe o lamento da morte. Quando manas está estável vayu está estável, então o bindu [ ] fica estável. Quando o bindu está estável o corpo torna-se sattva [ ] e estável.”
O tantra tem o mundo material como existente [satkAryavAda]
e sagrado, assim o desfrute do mundo é também uma ferramenta para libertação, o
yogi [yogI] é o
bhogin [ ].
“(Sahajoli [sahajolI]) É muito benéfica e
possibilita moksha através da combinação de yoga e bhoga [ ]” HP
III.94
As práticas eróticas que buscam a libertação são
mais uma marcante característica tântrica. No hatha há tanto o erotismo
concreto vamachara [vAmAcAra] das “oli” [olI] mudras no maithuna
[ ] como o erotismo simbólico dakshinachara [dakSiNAcAra] do reencontro
da Kundalini Shakti [kuNDaliNI
shakti] com seu marido Shiva.
Para aquele que opta pela prática simbólica, a khechari mudra [khecarI
mudrA] produz resultados no samarassa [ ] da mesma maneira, pois acessa
o rassa, que é a ambrosia da imortalidade. Aqui temos outro fator de
inclusão, pois ser casado ou celibatário não é pré-requisito para o yoga.
Outra marca do tantra são os ensinamentos passados
através de diálogos do casal divino, Shiva e Parvati. Como lemos nessa passagem
da Shiva Samhita V.1 (século XVII)
“Shri Devi [shrI devI] diz: - Oh Senhor, Oh
amado Shankara [shaMkara]!
Diga-me, por amor
desses cujas mentes buscam o fim supremo, quais são os obstáculos e os impedimentos
do yoga.”
O tantrismo presa a linhagem e a tradição, como
vemos com SvatmarAma [svAtmArAma] que saúda e apresenta o sampradaya [sampradAya] em seu Hatha Pradipika I.1 - 4, (século XIV).
“Reverencio Shri Adinatha [shrI AdinAtha], que ensinou a sabedoria do Hatha Yoga como o primeiro degrau para o cume do Raja Yoga [rAja yoga]. ... Matsyendra [
] e Goraksha ensinaram a Hatha Vidya [haTha vidyA] e graças a eles yogi Svatmarama a tornou clara.”
Essa linhagem segue uma tradição específica
tântrica: a dos nathas, palavra que
significa senhor ou protetor. O natha sampradaya
[nAtha sampradAya] é
encabeçado por Shiva como o
Senhor Original, Adinatha, que
ensinou o yoga para obtenção da libertação e da imortalidade. Os Nava Natha [nava nAtha], 9 Senhores,
representam as energias do ciclo de criação, por isso personificam a
cosmogonia.
Historicamente, o nathismo foi criado por Matsyendra
e desenvolvido por Goraksha. Hoje ainda é uma tradição viva na Índia e Nepal. O
nathismo surgiu como uma reforma do yoga em bases mais populares e
acessíveis a qualquer um que quisesse se dedicar a ela.
Os nathas são intrinsecamente ligados aos siddhas de onde se ramificaram. O siddha
[ ] é aquele que atingiu a perfeição “mágica” das siddhi[1]s. Há inúmeros relatos de façanhas miraculosas dos
siddhas nas lendas populares da Índia e Nepal. O siddha sampradaya,
originário do poderoso mago alquímico budista Nagarjuna [nAgArjuna], surge 2
séculos antes do nathismos e conta
com um número mítico de 84 siddhas. Praticamente todos os nathas são siddhas.
Como explicado acima, no hatha yoga busca-se as siddhis, dos poderes mágicos e da
perfeição de si.
“Se no corpo
do yogi pleno de amrta [amRRita] há 2 a 3 anos, o sêmen [retas] fluir
para cima, {ele} desenvolverá as qualidades
encabeçadas por anima [aNimA].” GoÇ
65
“As dez mudras que
conquistam a velhice e a morte. Foram dadas por Adinatha. Conferem as oito poderes
divinos [siddhis] desejados por todos os siddhas que se esforçam através delas.”
HP III.6 à 9
“Quando a língua pressiona
constantemente a cavidade, flui o néctar cujo gosto é caustico, pungente e
ácido, com consistência leitosa, de mel e de ghrta[2] [ghRRita]. Doenças fatais e velhice são eliminadas e nenhuma
arma poderá feri-lo. Desta maneira se manifesta a imortalidade e as siddhis.
O fluído goteja do lótus de 16 pétalas, quando a língua pressiona para cima a
cavidade, e a Parashakti [parAshakti] é libertada, então se deve concentrar nisso. O yogi que
se concentra em beber o puro líquido secretado, não morre e seu corpo se torna
belo e delicado como o caule de um lótus. Dentro da cavidade do topo do Meru, o
néctar é secretado. O sábio puro reconhece a verdade que de chandra [candra]
jorra como cachoeira o néctar, a essência corpórea, e conseqüentemente a morte
dos mortais. Por esta razão se deve praticar a mudra, pois de nenhuma
outra forma será alcançada a siddhi corpórea. Esta cavidade é o lugar de
confluência dos cinco rios e confere o conhecimento divino. A khecari mudra
deve ser estabelecida no shunya[3] [shUnya] imaculado.” HP III.50
à 53
Entre os nathas
também há vários aghoris [aghori] e kapalikas [kapalika], o que explica em
parte, as práticas abjetas como sagradas.
“A amaroli [amarolI]. De acordo com os kapalikas,
amaroli é beber a parte do meio do jato da urina fresca.” HP III.96
No universo da magia, temos os nathas como uma variação dos
alquimistas, rassayanas [rAsayaNa],
pois trabalham a transmutação corpórea buscando a perfeição da imortalidade e a
libertação em vida como jivamuktis
[jIvamukti]. Como vemos explicitamente aqui:
“Para aquele que tem controle
interno, um ferrolho segura um cavalo, assim o yogi pratica diariamente
a culto ao nada. O sulforoso nada [nAda] prende o manas
mercurial, no que é denominado niralamba [nirAlamba].” HP IV.95 e 96
Os nathas
yogis tem uma cultura de inclusão.
Entre eles havia e há sadhus [sAdhu],
brahmacharins brahmAcarin], grhastas [gRRihasta], shudras [shUdra], maharajas [maharAja], hindus, budistas, jainistas, islâmicos,
homens, mulheres, deficientes físicos, jovens, adultos, idosos. Embora todos
possam, apenas os verdadeiros praticantes se realizam.
“Qualquer um que pratique yoga
ativamente, seja jovem, velho ou muito idoso, doentio ou fraco, pode se tornar
um siddha. Qualquer um que pratique pode adquirir siddhis, mas
não aquele que é preguiçoso. As yoga siddhis não são adquiridas
só pela mera leitura dos shastras [shAstra]. Nem são alcançadas por usar
vestimentas de yoga ou por conversar sobre yoga, mas através de
prática incansável. Este é o segredo das siddhis. Não há duvida sobre
isto. Todas as práticas do Hatha: assentamentos {pIThas}, vários kumbhakas
[ ] e procedimentos divinos {divya karaNa}, devem ser mantidas até o
Raja Yoga dar frutos.” HP I.67 á 70
Assim há os que optam por viver o desfrute mundano
(bhoga), casando e vivendo plenamente
em sociedade e há os sadhus
celibatários que vivem apenas o yoga. Entre os nathas é dito que ou se começa com bhoga e depois segue pelo yoga, ou o inverso; não há diferença. Os nathas que renunciam ao mundo passam
pela iniciação em que da cartilagem da orelha é perfurada com uma grande argola
de ouro, ganhando o nome de kanphatas
[kAnphata].
As origens mitológicas do hatha yoga, obviamente são divinas.
“Adinatha ensinou esta vidya a Parvati, como
descrito no Mahakala Yoga Shastra [mahAkAla yoga shAstra] e outros trabalhos:
[girijAyai
AdinAtakRRito haThavidyopadesho mahAkAlayogashAstrAdai prasiddhaH (jyotsnA)]” (KAVIRAJ,
1927)
Segundo as lendas, a Devi perguntou a Shiva,
porque ela havia renascido. Shiva propôs explicar ensinando sobre a sabedoria
secreta do yoga em um lugar reservado no fundo do mar. Contudo, um garoto, que
havia sido engolido por um peixe quando era bebê e que cresceu em suas
entranhas, ouviu inadvertidamente todo o ensinamento divino que se fixou no seu
corpo e mente. Shiva percebeu que o menino havia aprendido tudo de dentro da
barriga do peixe, deu-lhe o nome de Matsyendra, o Senhor dos Peixes.
“[tIrasaMipanIrasthaH
kashcana matsyaH taM yogopadeshaM shrutvA ekAgracitto nishcalakAyo’vatashe]” (KAVIRAJ,
1927)
|
Matsyendra |
Por castigo
pela intrusão, a Devi condenou-o há um dia esquecer tudo o que aprendera. Por
12 anos, Matsyendra permaneceu praticando os ensinamentos vivendo dentro do
peixe, e só saiu quando já era um jivamukta, liberto em vida. Mais tarde
realmente Matsyendra perde a memória de sua real natureza e é resgato por seu
discípulo Goraksha.
Um dia uma senhora infértil que havia suplicado à Shiva
por um filho, encontrou Matsyendra e lhe pediu ajuda. O sábio deu-lhe um
punhado de cinzas mágicas e orientou que as engolisse, pois isso a faria
engravidar. A senhora, contudo, não acreditou e jogou as cinzas em uma
estrumeira. Passado 12 anos, Matsyendra retornou ao vilarejo e perguntou-lhe
sobre o menino. Ela contou que jogara as cinzas fora e indicou-lhe o lugar. Matsyendra
encontrou na estrumeira um garoto de 12 anos dotado da perfeição de um yogi.
Por isso, foi chamado de Goraksha, Protetor do Rebanho. Por surgir a partir da
súplica à Shiva, entende-se que o deus desceu à terra [avatAra] tomando
a forma de Goraksha.
|
Goraksha |
Historicamente, por volta do século IX de nossa
era, o sábio Goraksha sintetizou e divulgou o Hatha Yoga. Não há
registros claros do personagem histórico, apesar da notória fama por suas
proezas mágicas em muitas poesias populares. Dizem ter sido budista, convertido
ao hinduísmo. Foi discípulo do sábio kaula [ ] Matsyendra da região do
Assam, é o reverenciado como Buddha Avaloketishvara [buddha avaloketishvara],
no Nepal. Como mestre, Goraksha orientou muitos discípulos sem discriminação de
gênero, classe social, religião, nem condição física. Muitos de seus discípulos
se tornaram yogis importantes conhecidos por toda Índia. Aqui temos
outra das características tântricas a relação gurushishya [gurushiSya] e a eliminação de
valores elitistas de exclusão e segregação.
Resta comentar Gopinath Kaviraj [gopinAth KavirAj]
com a possibilidade de o hatha yoga
ter 2 origens:
“É difícil averiguar o quão
verdadeira é a tradição que atribui a fundação do hatha yoga como ciência aos nathas.
Além do mais, existe uma tradição rival que se refere a duas escolas de hatha: uma antiga e outra moderna,
fundadas respectivamente por Markandeya [markaNDeya] e pelos Nathas.
“[dvidhA haThaH
syAdekastu gorakSAdisusAdhitaH/
anyo mRRikaNDuputrAdyaiH sAdhito haThasaMshakaH/]” (KAVIRAJ, 1927)
Apesar dessa citação em sânscrito, não há o lugar
de onde isso foi tirado. No texto Sarngadhara Paddhati [sAr~ngadhAra paddhati], cita o hatha yoga de Markandeya Além disso, pelas minhas pesquisas encontrei uma
lenda sobre a imortalidade alcançada por Markandeya, que é a mesma busca proposta pelos nathas no hatha yoga.
Caberiam aqui muito mais detalhes como as óbvias
origens através do Patanjali [pata~njali], da tradição védica, até as do budismo de Nagarjuna com seu caminho do meio (que no hatha é o madhyamarga [mAdhyamArga] da sushumna [suSumnA]) e o shunya (é ouvido pelo som intangível do nadanusandhana [nAdanusandhAna]. Alem das influências externas como a da China com alquimia e tantas mais.
As origens pelos textos clássicos e a descrição das origens mitológicas dá uma
idéia da magnitude das influências desse rico período da história do yoga.
Legenda
GhS - Gheranda Samhita
GoS - Goraksha Shataka
HP - Hatha Pradipika
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®2013, Flávia Venturoli de Miranda
Pratique
asteya!
Ao
transcrever o texto na integra ou em parte, identifique o autor. J
Aliança do Yoga
As 8 siddhis clássicas são anima,
mahima [mahimA], garima [garimA], laghima [laghimA], prapti [prApti], prakamya
[prAkAmya], ishitva [Ishitva], vashitva [vashitva] e yatrakamavasayitva [ yatrakAmAvasAyitva] (miniaturização, maximização, densidade,
leveza, aquisitivo, volição,
supremacia, dominação
e transportação).